Prestes a completar 170 anos de sua publicação, o conto O Gato Preto, um dos mais célebres do escritor americano Edgar Allan Poe, ainda dá margem a múltiplas interpretações e reflexões. A história é considerada um estudo da psicologia da culpa, em que o personagem principal se atormenta pelos seus atos do passado, enquanto se apresenta e conta sua história de vida, sem poupar detalhes e sem tentar se eximir da responsabilidade pelos seus atos, apesar de justificá-los pela existência de uma força maléfica interior inerente à raça-humana. Em vezes escondida pela denominação de Espírito ou Demônio da Perversidade – como no conto de Poe de mesmo nome, também permeado pela culpa de um segredo macabro – mas também uma força oculta e irreprimível que traz a tona o que os homens têm de pior, uma maldade escondida sob as camadas de civilidade, além do que é consciente e psíquico. Uma qualidade perversa sobre a qual não temos conhecimento, nem controle e que pode de uma hora para outra transformar uma pessoas simples e pragmática em um criminoso sórdido. Uma idéia insidiosa e pérfida que leva a um ato desumano.
De certa maneira é fácil entender o que este personagem quer nos dizer com isso, pois assistimos estáticos todos os dias nos noticiários e lemos nas páginas dos jornais sobre pessoas que cometem atos que não conseguimos entender. Requintes de crueldade, por vezes acompanhados de um lapso de culpa que não se sabe dizer de onde vem. Segundo a teoria de Poe no conto, este Demônio da Perversidade dorme incubado em todas as pessoas, esperando apenas um momento propício para se revelar, e este pode ser libertado através de um ímpeto inexplicável, mas também de muitos meios, entre eles a bebida, grande companhia e tormento da vida de Poe e personagem presente em suas narrativas.
Paralelos com a vida real, fora da literatura não são difíceis de formar. Quantas vezes pequenas maldades cometidas quase inocentemente vão se acumulando dentro de uma pessoa, gerando uma insatisfação e um ódio que não se explica e que em algum momento acaba explodindo e causando uma tragédia? Como diria Hamlet em seu mais famoso solilóquio: “quem suportaria o açoite e os insultos do mundo, a afronta do opressor, o desdém do orgulhoso, as pontadas do amor humilhado, as delongas da lei, a prepotência do governante e o achincalhe que o homem paciente e dedicado recebe dos inúteis”, no que o trágico príncipe de Shakespeare descreve como uma vida servil, todos nós devemos agüentar uma cota de arrogância e petulância alheias. E este acúmulo de desprazimentos terminará por ser o elemento deflagrador dos acontecimentos desagradáveis que venham a seguir. O conceito nos é familiar apesar da estranheza que possa nos causar aceitar o fato concreto de que somos maus, não importando a educação e respeito que tenhamos pelos outros seres humanos, ou o amor desmedido que dispensamos a família e animais, bem como o personagem principal do conto de Edgar Allan Poe. É no mínimo custoso acreditar que nós, pessoas civilizadas, que vivem em sociedade, com cultura e refinamento e respeitamos a lei e demais instituições da vida em comunidade, somos realmente maldosos e em algum momento capazes de realmente cometer um crime hediondo. Mas será mesmo tão difícil? São inúmeros casos que nos vem à memória e que provam que o Espírito da Perversidade é bem real, e que apenas à maioria das pessoas falta aquele estopim que vai permiti-las cometer um crime, apesar de todos sermos muito capazes de pequenas perversidades diárias, como fazer piadas e brincadeiras cruéis e sádicas embora tais possam causar danos a outros.
Os temas obscuros característicos da obra do autor se encontram de forma mais evidente em O Gato Preto. Assim como o personagem principal de O Coração Delator, nosso protagonista de esvai em arrependimento pelo que fez e passa a culpar eventos externos como indícios de que o que fez foi errado. Afinal é mais fácil culpar um animal irracional, como um gato, do que compreender e aceitar a si mesmo como a força causadora de seus acessos de raiva, e por fim de seu crime. A neurose leva sua mente inquieta a lugares inimagináveis, onde alucinações exacerbadas acompanham o leitor em um mergulho pela mente do próprio Poe, e apesar do realismo inserido nesta verdade, o fatalismo e crueldade da história são uma ficção psicológica sombria. A perspectiva de um crime tétrico e medonho como todos os presentes nas obras de Edgar Allan Poe estão bem mais distantes da nossa realidade do que as pequenas maldades cotidianas que todos cometemos e suportamos. Este sim é o demônio da perversidade capaz de transtornar a lógica da natureza humana, nós mesmos, e nossa capacidade oculta e arrefecida para o mal.
segunda-feira, 2 de julho de 2012
Poe e a Perversidade Humana
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