O desafio do letramento no Brasil ainda é imenso, uma vez que é alto o índice de alunos alfabetizados que não compreendem o significado dos textos. Insatisfatório, o nível de letramento traz um forte efeito multiplicador negativo, já que a leitura é uma competência fundamental ao bom aproveitamento de todas as disciplinas e fontes de conhecimento. Para se ter uma ideia da relevância do tema, deficiências na área de matemática, por exemplo, podem estar ligadas a problemas de interpretação de textos, porque os estudantes não compreendem o enunciado das questões.
Todo texto, tomando como referência o filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975; estudioso da linguagem humana), é um gênero discursivo. Ou seja, há um discurso a ele intrínseco que é construído de acordo com o autor, interlocutor, situação de comunicação, imagens associadas, contexto histórico etc. Há, portanto, todo um contexto capaz de ajudar no entendimento. No processo de aprendizagem da leitura, essa visão deve permear não apenas a disciplina de língua portuguesa, mas todas as disciplinas. Professores de diferentes áreas têm, portanto, a missão de “ensinar o aluno a ler”.
As escolas, por sua vez, têm que estar conscientes do seu compromisso em garantir que os alunos desenvolvam, nas diferentes áreas do conhecimento, os procedimentos de leitura exigidos pelos distintos gêneros discursivos.
O texto expositivo, por exemplo, é um gênero presente na maioria dos livros didáticos das diferentes disciplinas. Para compreendê-lo é preciso fazer perguntas: qual é o contexto em que esse texto aparece? Para quem foi escrito? Como esse texto se organiza? No processo de aprendizagem da leitura, o texto tem que ser trabalhado dentro de um contexto de produção e recepção.
Para ensinar o aluno a ler os diferentes gêneros, o professor deve dominar os aspectos que compõem o texto. É necessário que haja compromisso do professor com o seu planejamento, para que ele se aproprie das características do texto que será trabalhado com os alunos. Seja um gênero da esfera literária, jornalística, publicitária, científica ou escolar, o professor tem que ter clareza dos objetivos de ensino e aprendizagem.
Além da apropriação do gênero, o educador deve ensinar as diferentes estratégias de leitura que possibilitam o engajamento com o texto. As intervenções do professor devem criar situações didáticas que ajudem o estudante a aplicar seu conhecimento prévio, a realizar inferências para interpretar o texto e a identificar e esclarecer o que não entende. O compromisso da escola é garantir que todas as áreas incluam em seus planejamentos o ensino da leitura dos gêneros discursivos escolhidos para o trabalho.
Mas como as estratégias didáticas revelam essa concepção teórica? Apresento alguns breves exemplos para apontar caminhos para a atuação prática do professor no papel de formador de leitores competentes. Em língua portuguesa, o professor pode propor o estudo de um gênero discursivo, como por exemplo uma notícia, e compreender os recursos linguísticos próprios de texto da esfera jornalística. Além de possibilitar que o aluno compreenda a situação de produção de uma notícia, onde o texto circula, quais os temas que são tratados, o professor ensina os aspectos gramaticais exigidos pelo currículo. Na disciplina de geografia, por exemplo, o professor pode explorar a leitura de um mapa, ou um infográfico, analisando a estrutura própria desses gêneros. Ele pode realizar intervenções de modo que os alunos estabeleçam relação entre imagem e texto, entendam as funções das legendas etc. Para isso, deve apropriar-se do texto antes. Desse modo, garante a compreensão do gênero e a aprendizagem dos conceitos da disciplina. Em matemática, o professor pode aprofundar-se nos recursos linguísticos próprios de um enunciado e trabalhar a interpretação de palavras, como “diferença”, “sobra”, “reduzir”, que muitas vezes possuem sentido distinto daquele usado no cotidiano. É papel do professor instrumentalizar o aluno para ler os textos próprios de cada disciplina. Há diversas maneiras de ler e distintos objetivos de leitura. O compromisso de ensinar a ler deve ser de todos.
De acordo com essa perspectiva, é fundamental o trabalho com o desenvolvimento da leitura crítica dos textos. É preciso, dentro de cada gênero, apresentar as diferentes vozes presentes no texto. Para tanto, o professor pode explorar os locutores e interlocutores de cada produção estudada e pensar como essas diferentes vozes influenciam na escolha das palavras, na composição do texto, no estilo, nos locais de circulação etc. Essas habilidades de leitura devem ser ensinadas, para que o aluno se torne um leitor competente, proficiente e engajado.
A necessidade atual de mudança nas estratégias de ensino e aprendizagem fica evidente quando vemos um leitor ser capaz de decodificar um texto, mas não ser capaz de inferir o sentido de uma palavra, por exemplo. A questão é que a escola ensina o código, mas nem sempre está atenta a propor tarefas para que o aluno pratique a leitura de maneira a desenvolver as diferentes habilidades que compõem a competência leitora. A tecnologia, nesse contexto de Era Informatizada, tem papel fundamental. Do momento de planejar ao de avaliar, a tecnologia deve estar à serviço das relações de ensino e aprendizagem. Algumas ferramentas vêm sendo desenvolvidas nas áreas de matemática, ciências, e na área de comunicação entre professor e aluno, por exemplo; na área da linguagem, também existe uma ferramenta que trabalha a leitura dentro dessa perspectiva.
Permanece, assim, o desafio de colocarmos em discussão as diferentes formas de pensar e entender a leitura de maneira a atingir eficácia na relação ensino aprendizagem em todas as áreas do conhecimento. Além disso, de considerar que as práticas em leitura devem integrar um aprendizado contínuo, sempre levando em conta novas habilidades a serem desenvolvidas e consolidando as habilidades já adquiridas, e isso não apenas na fase inicial da vida escolar da criança.
Com base nessa ideia de um processo contínuo de ensino e aprendizagem, e em um contexto altamente informatizado e veloz nas informações, o professor deve buscar o compromisso diário de formar leitores críticos. Torna-se cada vez mais importante que o aluno do século XXI atinja a proficiência e a criticidade em leitura, para, dentre outras habilidades, ser capaz de considerar diferentes perspectivas. O docente é, certamente, um dos profissionais que tem em mãos o privilégio de levar o país para um outro patamar na área da leitura. E a escola tem, portanto, a tarefa de promover estratégias, tempo e espaço, que auxiliem o trabalho de planejamento dos professores das diferentes áreas.
*Por Leticia Reina. Mestre em linguística aplicada pela PUC-SP, pós-graduada em psicopedagogia pela Unimarco e graduada em psicologia pela Universidade São Marcos. Atualmente é diretora pedagógica da Guten Educação e Tecnologia. Com 20 anos de experiência em educação, trabalhou em escolas referência em São Paulo em cargos de coordenação e orientação. Foi professora da pós-graduação no Senac-SP e atuou na elaboração de materiais didáticos na FTD.
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