Os quadrinhos viveram, em 2010, o seu melhor momento na década que se encerrou. No ano, mais de 40 editoras investiram em títulos da chamada nona arte. E houve
excelentes opções para os mais variados gostos e bolsos.
E foi um ano ótimo para os quadrinhos nacionais. Não apenas pelo
número de materiais publicados, mas principalmente pela qualidade.
Nunca antes na história,
tantas HQs brasileiras figuraram na lista dos melhores. Pela primeira
vez, havia mais de 20 títulos de autores daqui com fôlego pra brigar
por uma vaga na seleção.
Então, confira a seguir, em ordem decrescente, os melhores lançamentos de 2010.
Obras inéditas
20) Yeshuah - O Círculo Interno O Círculo Externo (Devir)
- Neste segundo livro da série, que é o melhor trabalho da carreira de
Laudo, tanto em texto quanto em arte, Yeshu (nome hebraico de Jesus
Cristo) retorna ao convívio dos homens, após passar por grandes
privações e tentações no deserto. E começa a ter seguidores, entre eles
Miriam Magdalit (Maria Madalena). O interessante do projeto, que será
concluído em 2011, é o foco, muito mais humano do que místico, quando
se trata do protagonista. Embasado por muita pesquisa, o autor constrói
sua própria versão sobre a vida de Jesus e tornou a trama atrativa até
para leitores sem qualquer convicção religiosa.
19) Namor - As Profundezas (Panini)
- Muito bem escrita por Peter Milligan e com a arrebatadora arte
pintada de Esad Ribic, a trama mostra um Namor diferente do da
cronologia oficial da Marvel.
O cientista e explorador Randolph Stein, que procura desmitificar as
famosas lendas da humanidade, investiga o desaparecimento do Capitão
Marlowe na Fossa das Marianas - o local mais profundo dos oceanos. É
ele que refuta as fantasias sobre o suposto guardião do local: um
furioso e vingativo príncipe submarino. A obra integra uma coleção de
boas HQs, em capa dura, mas com preços "em conta". Ponto para a Panini.
18) Vó (Leya / Barba Negra) - Neste livro de formato simpático e diagramação diferente dos tradicionais pockets
de quadrinhos, o grande público pôde, enfim, conhecer o talento de Jean
Galvão como quadrinhista. Até então, suas tiras, da série Animatiras, chegavam apenas aos leitores da Recreio, da Abril. Mas, felizmente, ele resgatou Vó,
que proporciona um riso fácil, leve, gostoso, com piadas simples, um
traço bem engraçado e sem nenhuma pretensão "cabeça". Além disso, a
velhinha simpática, religiosa e hipocondríaca lembra muitas avós por aí.
17) Macanudo # 3 (Zarabatana)
- Este primor de série serviu como "pontapé inicial" para que o mercado
brasileiro descobrisse quanta coisa boa vem sendo produzida pelos
quadrinhistas argentinos. Em seu terceiro álbum, a arte genial de
Liniers (que hoje é publicado na Folha de S.Paulo)
continua evoluindo. O autor brinca com o formato das tiras, mistura
preto e branco e cores, não se apoia num único personagem e, neste
volume, começa a se retratar com orelhas de coelho e inicia a divertida
série As verdadeiras aventuras de Liniers. Macanudo é engraçado, poético e belo na medida certa.
16) A escrava Isaura (Ática) - A Ática vem trabalhando com bastante competência o selo Clássicos brasileiros em HQ - tanto que os três álbuns lançados em 2009 entraram no PNBE. E A escrava Isaura
segue na mesma toada. A leitura é muito agradável, especialmente em
função do roteiro conciso de Ivan Jaf (autor que tem feito vários
trabalhos desse gênero), que transmite o conteúdo da obra original, sem
carregar as páginas de texto. E os desenhos "soltos", as belas
aquarelas e as cores sóbrias de Guazzelli contribuem bastante para a
fluidez da leitura.
15) Bórgia - As chamas da fogueira (Conrad)
- Esta série reúne dois grandes dos quadrinhos. No roteiro, Alejandro
Jodorowsky transmite com mestria toda a sordidez que reinava no
Vaticano no Século 15, numa trama repleta de traição, morte e sexo. Na
arte, Milo Manara se encarrega de dar forma à decadência da Igreja no
final da Idade Média. Além de suas exuberantes mulheres (aqui presentes
em orgias e até incestos), destaque para a reprodução de cenários da
época. O leitor brasileiro esperou quatro anos para ler este terceiro
tomo, mas valeu a pena. Que o já prometido quarto e último álbum venha
logo.
14) Fábulas - Volume 5 - Os ventos da mudança (Panini)
- Bill Willingham criou uma baita série. Mergulhando na tradição dos
contos de fadas, uma fonte quase praticamente inesgotável de ideias,
ele criou um fascinante universo ficcional. E sempre com bons desenhos.
Não à toa, Fábulas coleciona prêmios Eisner. Este álbum é o primeiro da Panini
somente com HQs inéditas e mostra o parto de Branca de Neve e detalhes
do passado de Bigby Lobo, além de deixar diversos ganchos para o
futuro. Depois de passar por Devir e Pixel, o título, ainda bem, parece ter engrenado. Tanto que em 2010 saiu também o sexto volume, Terras natais.
13) Peanuts - Completo - 1955 a 1956 (L&PM) - Um dos grandes projetos editoriais de 2009, esta coleção teve continuidade com dois novos livros. O segundo
saiu em março; e este em agosto, dando continuidade à publicação, em
ordem cronológica, de todas as tiras Snoopy e companhia. Isso permite
ao leitor a deliciosa chance de acompanhar a evolução dos personagens
ao longo dos anos. Neste terceiro volume, Charlie Brown sofre sua
primeira decepção no beisebol, Snoopy começa a andar sobre duas patas e
a pensar, Lucy está cada vez mais insuportável e Linus fala suas
primeiras palavras e protagoniza grandes piadas. Imperdível!
12) O Fotógrafo # 3 - Uma história no Afeganistão (Conrad
- Depois de mostrar o Afeganistão, um país arrasado pela pobreza e pela
guerra durante a invasão soviética em 1986, na companhia da organização
Médicos Sem Fronteiras, o fotógrafo francês Didier
Lefèvre inicia sua viagem de volta ao Paquistão, na qual chega a ser
mantido em cárcere privado e fica perto da morte. E, como nos dois
volumes anteriores (o primeiro lançado em 2006; e o segundo em 2008),
faz isso numa mistura de belas fotos em preto e branco e dos quadrinhos
de Emmanuel Guibert, diagramados e coloridos por Frédéric Lemercier. Um
encerramento em grande estilo para a série.
11) Os
Sertões - A luta (Desiderata)
- A adaptação do clássico de Euclides da Cunha para os quadrinhos foi lançada
no final de 2010 - talvez por isso não tenha integrado muitas listas de melhores
do ano feitas em dezembro. O roteirista Carlos Ferreira e o desenhista Rodrigo
Rosa (num de seus melhores trabalhos) fazem uma bela versão do relato sobre
a Guerra de Canudos. Com ênfase na palavra versão, pois os autores se desprenderam
ao máximo do texto original - o próprio Euclides vira o protagonista e o subtítulo
A luta faz menção só à terceira parte da obra (as demais são A
terra e O homem).
10) Taxi (independente) - A exemplo do que havia feito em Có!,
Gustavo Duarte apostou numa narrativa sem nenhum balão de texto em sua
segunda revista solo de história em quadrinhos. E, novamente, deu uma
aula de técnicas de narrativa, num roteiro muito bem-humorado, cheio de
referências e com direito a várias pirações do autor. É quase possível
enxergar o movimento dos personagens entre uma cena e outra. E a
variação das expressões faciais, tanto nos seres humanos, quanto nos
antropomorfizados, é de tirar o chapéu.
9) Fracasso de Público # 2 - Desencontro de Titãs (Gal)
- O bom primeiro volume da série foi um aperitivo, pois neste segundo
as várias tramas que formam a história ganham mais força. Alex Robinson
divide os questionamentos da obra por diferentes linhas narrativas, com
vários personagens. E o interesse do leitor não cai. Não é fácil. E seu
traço, com um jeitão humorístico, prima pela excelente narrativa, com
enquadramentos e diagramação das páginas competentes. Como ressaltou
Lielson Zeni em sua resenha no UHQ, "Robinson prova
que é possível ser denso, lírico e dramático sem perder a graça e o
humor; o leitor se emociona e se diverte ao mesmo tempo".
8) Notas sobre Gaza (Quadrinhos na Cia.)
- Dez anos depois de relatar em quadrinhos o conflito entre israelenses
e palestinos, Joe Sacco volta à Faixa de Gaza para o seu projeto mais
ambicioso: resgatar do quase esquecimento dois episódios ocorridos
cerca de 50 anos antes, considerados verdadeiros massacres, mas pouco
citados nos relatórios da ONU. Pela primeira vez, o
autor conta uma história da qual não foi testemunha ocular - e se sai
muito bem. Além do relato jornalístico, esta é a obra em que Sacco está
mais maduro como quadrinhista, com páginas mais bem diagramadas e um
traço detalhista ao extremo.
7) (SIC) (Conrad) - Em seu review para o UHQ, Marcelo Santos Costa lamenta que (SIC) só tenha chegado ao mercado após ter sido financiado pelo ProAC - Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo. E tem razão. Orlandeli, vencedor da categoria Tira do 35º Salão de Humor de Piracicaba,mostra-se
um dos melhores quadrinhistas em atividade no Brasil. Sem usar
personagens fixos, ele vai do cômico ao trágico e sempre consegue fazer
o leitor rir - ou, muitas vezes, pensar - em cenas que mesclam o
cotidiano e o surreal! E tudo com um desenho perfeito para o humor!
6) Criminal - Covarde (Panini)
- A série que é considerada o melhor trabalho do roteirista Ed Brubaker
nos quadrinhos finalmente chegou ao Brasil, mas não teve o alarde de
merecia - talvez a edição em capa dura tenha afugentado potenciais
leitores. Neste primeiro álbum, que tem desenhos do ótimo Sean Philips,
a trama gira em torno dos preparativos para um assalto e as
consequências dele. O protagonista é o ladrão Leo Patterson, o covarde
do título, que nunca entra em nenhum negócio sem medir riscos. E um dos
principais méritos do autor é fazer o leitor torcer pelo criminoso. O
segundo volume de Criminal sai em 2011.
5) Xampu - Lovely losers (Devir)
- Este álbum foi uma agradável surpresa para quem achava que Roger Cruz
apenas desenhava. Primeiro de uma série em três volumes, mostra a vida
e os relacionamentos de diversos (e cativantes) personagens que viveram
a juventude nos anos 80, com muito sexo, drogas e rock'n'roll. E a arte
está sensacional, com uma estilização "na medida" em seu desenho,
planos de "câmera" arrojados e uma narrativa impecável. O autor
demonstra que é muito mais do um artista que, um dia, desenhou X-Men e outros títulos do mercado norte-americano. Sorte dos leitores.
4) MSP
+ 50 - Mauricio de Sousa por mais 50 artistas (Panini)
- O leitor do UHQ sabe que o editor deste livro é este jornalista.
Mas seria hipocrisia deixá-lo de fora desta lista. Repetindo o sucesso do
MSP 50, se diferenciou porque, passada a comemoração aos 50 anos
de carreira de Mauricio, autores como Rafael Albuquerque, Mateus Santolouco,
Eduardo Medeiros, Adriana Melo, Mozart Couto, Allan Sieber, Romahs, Rafael
Grampá, Roger Cruz, Danilo Beyruth, André Kitagawa, Clara Gomes e outros se
mostraram mais soltos ao usar os personagens. Nas palavras de Eduardo Nasi,
em sua resenha neste site, "o resultado é um álbum fabuloso".
3) Kiki de Montparnasse (Record) - Este álbum chegou ao Brasil referendado por prêmios, como o Prix Essentiel Fnac SNCF, no Festival de Angoulême,
de 2008. E faz por merecer. Após uma extensa pesquisa sobre a modelo,
pintora, cantora e dançarina que teve presença ativa na vida cultural
parisiense dos anos 1920, o roteirista José-Louis Bocquet, com os
desenhos discretos de Catel Muller, fez mais do que uma biografia em
quadrinhos. Deu vida a uma bela HQ, na qual Kiki, com sua vida cheia de
polêmicas com drogas, álcool e paixões ardentes, vai da glória ao
ostracismo cativando o leitor.
2) Bando
de dois (Zarabatana) - Quem disse que brasileiro
não sabe fazer HQs de aventura? Danilo Beyruth provou o contrário neste álbum
excelente, que foi um dos contemplados pelo ProAC em 2009.
Ao melhor estilo faroeste (com sotaque nordestino), o autor mostra Tinhoso
e Caveira de Boi, os dois únicos sobreviventes de um bando que era composto
por 20 cangaceiros, em busca do mesmo objetivo, mas por motivações diferentes.
Uma grande história, com começo, meio e fim, desenhos magníficos e a melhor
capa produzida no Brasil no ano passado para uma história em quadrinhos.
1) Cicatrizes (Leya / Barba Negra)
- As HQs autobiográficas já praticamente se tornaram um nicho da arte
sequencial. Há dezenas, muitas delas excelentes. Geralmente, o que mais
chama a atenção nesses trabalhos é o drama pessoal do autor. Mas são
raros os casos em que a arte é tão chamativa quanto o texto. Nesse
seleto clube estão graphic novels de Will Eisner, Retalhos, de Craig Thompson, e este Cicatrizes. Há, sim, todo o contexto da família complicada e das dificuldades da adolescência, mas a diferença é que David Small pensou
sua vida como quadrinhos antes de transpô-la para o papel. Ilustrador
de livros infantis e de revistas, ele não permitiu, em momento algum,
que sua história se tornasse enfadonha pelo excesso de texto nas
páginas ou por lamúrias em repetição. Assim, com um traço simples,
porém muito expressivo, e uma narrativa primorosa, realizou uma grande
obra.
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