Junto com as sobras de alimentos descartados no lixo, Batista recolhia
todos os livros que encontrava e vinis de Beethoven e Bach, atualmente
suas inspirações. Ele se formou há menos de três meses e agora sonha em
abrir um consultório.
"Meu pai era quem fazia o sustento de casa, e morreu de uma úlcera que
provocou hemorragia interna. Minha mãe ficou louca e bebia muito. Ela
começou a lavar roupa para fora e a catar latinha no meio da rua, mas
não era suficiente. A gente sempre passou fome, tudo o que ela fazia não
dava jeito. E meu irmão levava traficante para a nossa casa. Aliados a
nossa miséria, tínhamos o alcoolismo e as drogas dentro de casa. Eu saía
para buscar comida – a gente não tinha mesmo, não tinha nem o que
vestir – e tinha dias que não voltava. Eu não precisava, mas tinha dias
que dormia na rua para não ter que aguentar as brigas", lembra.
Na procura por alimento, o garoto encontrou coisas que lhe despertavam
uma atenção ainda maior. As páginas cheias de letras e figuras e os
discos o deixavam fascinado, ainda que misturados ao chorume que havia
no lixo. Cícero sempre reservava um pedaço da caixa que carregava para
os "tesouros". Com a ajuda de vizinhos, ouvia os vinis e pôde aprender a
sonoridade de cada letra.
"Fui juntando as sílabas e compreendendo as sentenças e palavras.
Quando entrei na escola para fazer o primário, já sabia ler, escrever e
fazer as operações fundamentais. Entrei tarde, acho que eu tinha 10
anos, eu que pedi para a minha irmã me matricular", diz. "Eu trazia a
caixa na cabeça debaixo de chuva e sol. Muitas vezes, escorria secreções
dos alimentos e das carnes em mim. Eu parava, descansava um pouco e
então seguia para casa."
Entre as obras que encontrou descartadas estavam "O sermão de Santo
Antônio aos peixes", do Padre Antônio Vieira, e "A metamorfose", de
Franz Kafka, além de "Magnificat" e a cantata "BMV 10" de Bach. O menino
também achou livros de biologia, filosofia, teologia, direito e
história e passou a colecioná-los em casa. Tudo era lido por ele.
"Amo Bach e Mozart. Junto com os livros, eles me salvaram. Eles falavam
mais alto que a fome e me transportavam para outros mundos", conta o
médico. "Depois descobri Vivaldi e Strauss e comecei a amar música
clássica. Às vezes eu pensava, vendo a vida dos compositores, que se
Bethoven era surdo e fez o que fez, eu não poderia tentar? Eu, mesmo com
fome, mesmo com adversidades, pobre, negro, não sendo homem bonito,
conseguiria chegar lá. E é isso que a gente tem que pensar, que todo
esforço é poder."
A inspiração o levou a fazer um teste para o curso profissionalizante
de técnico de enfermagem, que valia como ensino médio. A ideia veio dos
cuidados que ele tinha com a saúde da família e do gosto por dissecar
cachorros mortos ou observá-los ampliados com a ajuda de uma lente
achada em máquina de fotografia Polaroid, também tirada do lixo. O jovem
foi aprovado em segundo lugar na seleção.
Após concluir os estudos, Cícero decidiu então prestar concurso e passou
a trabalhar na Secretaria de Saúde. O pouco dinheiro já era um alívio
diante das dificuldades vividas pela família, mas o rapaz queria mais.
Três anos depois, fez vestibular para medicina em uma faculdade
particular no interior de Minas Gerais, passou e, sem pensar duas vezes,
decidiu enfrentar o novo desafio.
Como não podia abrir mão do emprego, o jovem se dividia entre os
plantões aos fins de semana no Distrito Federal e as aulas na outra
cidade. O salário seguia contado. "Acabei passando fome, cheguei a
desmaiar em sala. Por vezes, precisei dormir na rodoviária para
economizar", lembra.
Um ano e meio depois, o rapaz conseguiu 100% de desconto em uma
instituição de Paracatu (MG) por causa do bom desempenho no Enem. A
faculdade se recusou a aproveitar os três semestres feitos em Araguari, e
Cícero precisou recomeçar os estudos. Seis meses depois, já em 2008,
ele repetiu o resultado e conquistou uma bolsa integral em Brasília.
"Quando vim, eles aproveitaram algumas matérias, mas também não
quiseram me progredir de período, portanto eu voltei à estaca zero de
novo. Mas eu nunca desisti, continuei trabalhando e fazendo o meu curso.
Eu saía do plantão noturno para a faculdade. Era muita dificuldade,
tinha dias que eu chegava molhado e sujo porque tinha chovido, eu pegava
dois ônibus, e no trabalho eu era obrigado a usar roupa branca", conta.
Sem os custos com passagens de viagens interestaduais e a mensalidade,
Cícero pôde se dedicar melhor às paixões. Ele virou frequentador assíduo
de sebos e passou a comprar mais livros e vinis. Assim, reforçou a
paixão pelos autores e músicos que conheceu por meio do lixo e pôde
estender as noções que já tinha na área. As primeiras compras para si
foram livros da faculdade de medicina e CDs de música clássica.
Formado em junho deste ano, Cícero atualmente trabalha como médico
clínico e generalista em dois hospitais de Águas Lindas e Valparaíso,
municípios no Entorno do DF. Ele afirma reconhecer em muitos pacientes
um quadro semelhante ao que viveu. "São iguais a mim. São pessoas que
muitas vezes chegam com fome, chegam doentes porque não tiveram o que
comer".
Para ele, a experiência na infância acaba o ajudando a cumprir o que
considera uma missão. "O médico muitas vezes tem essa autonomia de
aliviar o sofrimento. Eu me formei em medicina para aliviar o sofrimento
de pessoas que estavam como eu."
Fonte: G1
0 comentários:
Postar um comentário