Ao abordar temas relevantes como a crise da imigração nos Estados Unidos, Arquivo das crianças perdidas mostra uma empatia rara. Por meio de diversas vozes, sons e imagens, Valeria Luiselli cria um romance virtuoso, que fala tanto de uma família quanto de um país.
Leia abaixo o ensaio do crítico literário James Wood, publicado originalmente na revistaThe New Yorker em fevereiro de 2019 e traduzido para o português por Renato Marques.
Escrevendo sobre escrever sobre a crise na fronteira, por James Wood
“Nesse meio-tempo, enquanto a história continua, a única coisa a fazer é contá-la de novo e de novo, à medida que ela se desenrola, se desdobra e se bifurca, enovelando-se em torno de si mesma. E ela tem que ser contada, porque antes que qualquer coisa possa ser entendida, precisa ser narrada muitas vezes, em muitas palavras diferentes e de muitos ângulos diferentes, por muitas mentes diferentes.” Essas frases são de Tell Me How It Ends, mas poderiam facilmente ter aparecido em Arquivo das crianças perdidas, o novo romance de Luiselli, que oferece uma versão ficcionalizada do material de seu livro anterior –– a autora retornando, de modo diferente, às mesmas histórias, e lutando consigo mesma e com seu instrumento de maneira ainda mais produtiva do que em Tell Me How It Ends. O formato e diversos detalhes de sua jornada de 2014 permanecem inalterados. O romance é narrado por uma mulher não nomeada, que, na companhia do marido, igualmente sem nome, e seus dois filhos –– uma menina de cinco anos, filha que a mulher teve em um relacionamento anterior, e um menino de dez anos, filho do marido dela, também de outro relacionamento–– viaja de carro, no verão, de Nova York para o rincão sudeste do Arizona. A mãe e o pai não são exatamente escritores; são documentaristas do mesmo tipo e se conheceram enquanto trabalhavam em um grandioso projeto de gravação de áudio cujo objetivo era criar uma paisagem sonora de barulhos emblemáticos de Nova York –– o guinchar dos vagões do metrô parando de repente, pastores pregando, caixas registradoras abrindo e fechando, balanços oscilando. No Arizona, os dois planejam fazer coisas diferentes e adjacentes: ela trabalhará em “um documentário sonoro sobre a crise das crianças na fronteira”; ele pretende levar a cabo algo mais vago e abstrato: fazer o que ele chama de “inventário de ecos” sobre “os fantasmas de Gerônimo e os últimos apaches”.
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É impossível não admirar a poderosa ambição do romance. Mas é também um livro estranhamente sintomático, característico das dúvidas e inseguranças de nossa época, dividido entre o realismo cotidiano da autoficção diarística e os privilégios mágicos da irrestrita criação ficcional (as crianças no deserto, os textos de Ella Camposanto). O que está faltando –– a ausência é por certo intencional –– é, precisamente, o meio: um artifício ousado o bastante para inventar e evocar as especificidades cotidianas de pessoas cuja vida é muito diferente da nossa e cujo sofrimento parece quase inacessível. De modo estranho, tais histórias mal e mal aparecem neste livro cujo engajamento é veemente. A evidência de que a escrupulosa compreensão dessa alteridade é compatível com a criação ficcional original e séria pode ser encontrada em romances recentes de Jenny Erpenbeck (imigrantes africanos na Alemanha) e Rachel Kushner (um presídio feminino na Califórnia). Luiselli, mais brincalhona do que qualquer uma dessas escritoras, honrou, neste livro brilhantemente intrincado e constantemente surpreendente, sua própria e difícil diretiva: “a única coisa a fazer é contá-la de novo e de novo, à medida que ela se desenrola, se desdobra e se bifurca, enovelando-se em torno de si mesma”. A história ainda não terminou –– longe disso.
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